TUDA - pap.el el.etrônico

Em associação com Casa Pyndahýba Editora

Ano I Número 10 - Outubro 2009

Ensaio - Ronald Augusto

A poesia escrita no quadrículo mallarmeano


Poesia escrita, à primeira vista, pode parecer uma “classificação desnecessária e levemente absurda”, como observa o poeta-crítico Cândido Rolim, em recente artigo dedicado ao assunto. Mas, se recordarmos que em suas origens a poesia era alguma coisa assemelhada a um “canto-falado”, partitura vocal assentada sobre uma estrutura melódico-instrumental mesmo que às vezes incipiente, podemos concluir que o que nos soa agora sem sentido, traz em seu bojo o índice crítico de uma situação cultural que diz respeito ao nosso tempo. Portanto, havia uma poesia que era mesmo “palavra voando”, experiência de linguagem cuja fruição não tinha nada a ver com a solidão e o silêncio.

Esta realidade é que justifica a seguinte afirmação de Jorge Luis Borges: “Quando lemos versos que são realmente bons e admiráveis, tendemos a lê-los em voz alta. Um verso bom não pode ser lido em voz baixa ou em silêncio. Se isso for possível então o verso não vale a pena, pois um verso sempre exige sua pronúncia. O verso nos faz lembrar que antes de arte escrita foi uma arte oral: o verso nos lembra que inicialmente foi um canto”. E, além disso, um evento semiótico que pressupunha a recepção pública no instante de sua presentificação.

Mas, a invenção da escrita cursiva, a par da derrocada do mundo heróico, sepultou a poesia cantada. O espaço público, solidário e consensual, reflui para a imprecisão da subjetividade lírica. O leitor mudo encena a sua tragédia no quadrículo resumido da página manuscrita, ou impressa. O sermão dá passagem à confissão. Um parêntese: para usar uma metáfora resgatada ao campo da música, poderíamos dizer que a voz empostada se converte no canto à boca pequena da bossa nova; fecho-o. Mallarmé, no século19, já diz que tudo, mais cedo ou mais tarde, acaba num livro. Em literatura, toda teatralidade se rarefaz. O seu lado avesso esconde nada, e essa formulação também poderia servir de imagem ao poema como escritura-figura que se imprime no papel.

Com efeito, um dos desconfortos da poesia escrita encontra-se no seu rebuscamento (em potência) feito de lacunas, um discurso que, a contrapelo de sua impertinente escassez sígnica, convida o leitor-fruidor a fazer uma série de operações interpretativas; refinadas abstrações sensório-emotivo-intelectivas calcadas sobre uma negatividade extrema. Ao contrário (da estética) dos multi-meios que hoje predominam já que, por assim dizer, tudo neles está dado, ou seja, eles constituem uma positividade, na poesia escrita tudo tem de ser conquistado: os vazios de forma e fundo, sua instabilidade e sua irritante desmaterialização, agridem um mundo e uma mundanidade cujo apetite pela espetacularização dos eventos parece ser impreenchível.

Portanto, relativamente ao entorno, a poesia escrita parece se oferecer, agora, como algo cada vez mais limitado e pobre em termos de chances expressivas. A presumida “obsolescência” do preto-no-branco, ou seja, a mancha tipográfica do poema sobre a página mallarmaica, representam um insulto à hiperestesia da mentalidade contemporânea. Entretanto, corremos o risco de submetermo-nos à anomia já consagrada, se optarmos por qualificá-la (a poesia do suporte papel), sem receio, como um objeto “tosco”, inclusive porque a definição não condiz com uma linguagem que opera a partir de “suas desmesuras”. Isto é, em poesia estamos sempre na iminência de um gesto de ruptura que infelizmente nem sempre conseguimos dimensionar.

Por outro lado, a poesia escrita sugere comportar uma dose de “tosquidão”, sim; ainda mais se persistirmos dando crédito à perdulária performance intersemiótica dos meios expressivos da hora, uma superestimulação resultando, até certo ponto, em recepção passiva, ou indiferente.

Espécie de truísmo, a idéia algo anedótica de uma poesia escrita, vem à tona com o objetivo de manter uma eventual produção que a essa “corrente” se filie, nos domínios de uma poética tradicional. Assim, como resposta às exigências das tecnologias e estéticas contemporâneas, uma poesia, já não digo visual, mas espacial e performática em sua dinâmica, atenderia melhor à assemblage eletrônico-virtual que marca os estímulos necessários a nossa satisfação.

Vanguarda contraditória esta que não se movimenta a contragosto do solo, pelo contrário, credita sua inteligência em realidade cuja condição de fato consumado torna todo questionamento a seu respeito um anacronismo; investe suas forças numa transição que é, antes, de suportes do que de repertórios ou de formas. A retaguarda inventiva da poesia escrita migrou para a tela do computador: o poema experimental, até há pouco tempo construído caprichosamente com cartelas de letra-set, virou animação digital em 3D. Parece que vai sair da tela, mas, ao fim e ao cabo, não sai.

Ronald Augusto nasceu em Rio Grande (RS) a 04 de agosto de 1961. Poeta, músico, letrista e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004) e No Assoalho Duro (2007). Despacha no blog poesia-pau.