TUDA - pap.el el.etrônico

Em associação com Casa Pyndahýba Editora

Ano I Número 10 - Outubro 2009

Conto - Sílvio Ferreira Leite


Alexander Abon, "High", Oil on Canvas, 91 x 61 cms., 2002
A lição dos pombos

Ícaro, filho de Dédalo, que colou com cera um par de asas às costas, com o propósito de fugir voando do labirinto de Creta, morreu ao se aproximar do Sol, pois a cera derreteu. Mas sua ousadia não foi em vão. Morrendo, imortalizou-se como símbolo do sonho humano de voar.

Esse sonho nos acompanha desde que o primeiro pássaro realizou a façanha. Naquele dia, nasceu em nós uma inveja meio poética, meio aventureira, que alimentou a idéia do vôo como algo emocionante para a ave. Passamos a supor que os animais alados desfrutam do prazer indescritível de vencer a força de gravidade e se deslocar velozmente, como o vento, repletos de enorme satisfação, à beira do êxtase.

Como somos ingênuos! As aves voam apenas porque precisam se alimentar. Não deve haver nenhuma sensação extraordinária no meio de locomoção que lhes pertence por natureza. Quer uma prova? Observe os pombos, que catam comida nas portas dos bares e insistem em caminhar, mesmo tendo asas. De tanto comer na rua, ficaram a tal ponto preguiçosos que só ganham os ares quando os carros avançam sobre eles. Alguns sucumbem, pois deixam a fuga aérea para o último instante.

Os pombos estão virando aves terrestres. E talvez daqui a alguns milhares de anos acabem se esquecendo completamente de como era fácil percorrer distâncias estando acima dos obstáculos. Fico imaginando o pombo mais idoso do pombal relatando aos netos a velha lenda do tempo em que os pombos voavam.

Será que aconteceu o mesmo com as galinhas? Posso supor como seria o mundo das galinhas muito antes da invenção do milho e da minhoca, um tempo anterior ao galinheiro e à ração. A galinhada em bando, sobre nossas cabeças, cacarejando a uma só voz e riscando o céu rapidamente como quem foge de alguma panela futura.

Hoje, galinha ainda consegue correr. E os patos? Lentos e desajeitados, foram buscar refúgio na água. Ah, diria você, os patos selvagens voam. Sim, voam e migram. Claro, aí está a diferença: são selvagens, conseguiram escapar da influência das pessoas civilizadas, não foram domesticados. Já sei: eles se rebelaram.

Isso mesmo, graças a sua rebeldia, conseguiram evitar o cativeiro, a comida fácil, a proteção que tem dois lados, da mão que afaga e da mão que apedreja, como diria Augusto dos Anjos. Os patos selvagens só podem ser abatidos a tiros. Não há ninguém para lhes torcer o pescoço no domingo de manhã.

No nosso caso, de gente que caminha com os pés no chão, e apesar dos pombos, que tentam nos desiludir, espero que sempre prevaleça em nós o desejo de voar. Voar em outro sentido, não por inveja dos pássaros. Nem voar pelos ares, que já pertencem aos aviões. Mas voar em todas as direções, com a criatividade transformada em realização. Voar com asas próprias, que não precisam de cola. Voar com as asas da arte, do amor, da sabedoria. Voar por rebeldia pura, como os patos selvagens, para lugares cada vez mais distantes da insensatez.

Sílvio Ferreira Leite comanda o blog Revolução Silenciosa.