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Em associação com Casa Pyndahýba Editora

Ano I Número 10 - Outubro 2009

Memória - Roniwalter Jatobá

Mestre Graça


Há 117 anos nascia Graciliano Ramos, um autor em que a beleza estética da obra e a pureza moral do homem constituem um monumento perene em nossa cultura
Em 27 de outubro de 1892, há 117 anos, nascia Graciliano Ramos em Quebrangulo, Alagoas. Velho Graça, ou Mestre Graça, como o chamavam carinhosamente, é um dos mais importantes escritores da moderna prosa brasileira. Era o mais velho dos 15 filhos de um casal sertanejo de classe média. "Meu pai, Sebastião Ramos, negociante miúdo, casado com a filha dum criador de gado, ouviu os conselhos de minha avó, comprou uma fazenda em Buíque, Pernambuco, e levou para lá os filhos, a mulher e os cacarecos”, lembrou o escritor anos mais tarde. “Ali a seca matou o gado — e seu Sebastião abriu uma loja na vila, talvez em 95 ou 96. Da fazenda conservo a lembrança de Amaro Vaqueiro e de José Baía. Na vila conheci André Laerte, cabo José da Luz, Rosenda lavadeira, padre José Ignácio, Filipe Benício, Teotoninho Sabiá e família, seu Batista, dona Marocas, minha professora, mulher de seu Antônio Justino, personagens que utilizei anos depois".

Graciliano fez os estudos secundários em Maceió, capital alagoana, mas não cursou nenhuma faculdade. Em 1910, foi morar em Palmeira dos Índios, onde seu pai era comerciante. Em 1914, após uma rápida passagem pelo Rio de Janeiro, onde trabalhou como revisor, voltou à cidadezinha. A partir daí, começou a vida política e jornalística. Foi prefeito do município entre 1928 e 1930 e ali escreveu seu primeiro romance, Caetés.

De 1930 a 1936, morou em Maceió, onde era responsável pela direção da Imprensa e Instrução do Estado. Foi nesse período que produziu os romances São Bernardo e Angústia. O primeiro é marcado pelo sentimento de propriedade que move seu personagem principal, Paulo Honório, cuja obstinação é tornar-se fazendeiro. Depois de alcançar seu objetivo, Paulo propõe-se a escrever um livro, narrando sua experiência, e, por outro lado, não consegue encontrar uma justificativa para o desmoronamento de seu casamento com Madalena, que se mata. Já em Angústia conta-se a história de Luís da Silva, que é fruto de uma sociedade rural em decadência e carrega consigo nojo pelos outros e por si mesmo. Tímido, aproxima-se de sua vizinha, Marina, e pede-a em casamento. No entanto, surge Julião Tavares, o oposto de Luís da Silva, rico e ousado. Resultado: Marina é seduzida por Julião e Luís estrangula o rival. De acordo com os críticos, o clima de opressão do romance e o drama vivido por Luís da Silva fazem do romance um estudo sobre a frustração.

Em 1936, devido a suas posições políticas contrárias ao governo de Getúlio Vargas, Graciliano foi preso e deportado para o Rio de Janeiro. O escritor narra essa experiência no seu livro testemunho: “Memórias do Cárcere”. Solto, permaneceu no Rio, onde continuou o seu trabalho literário. Em 1938, escreveu sua obra-prima, Vidas Secas, onde se narra a história de uma família e sua cachorra Baleia perambulando pelo sertão nordestino, numa tentativa de fugir da miséria da caatinga tórrida e agreste.

No final da Segunda Guerra Mundial, em 1945, Graciliano Ramos já era considerado um dos maiores romancistas brasileiros. Nesse mesmo ano, ingressou no Partido Comunista Brasileiro. Segundo o escritor e professor Dênis de Moraes, Graciliano fez parte de uma geração de intelectuais que, após a derrocada do Estado Novo, mergulhou de corpo e alma na militância política, muitos deles filiando-se ao PC. A idéia de que, com a vitória dos aliados na Segunda Guerra Mundial, o mundo poderia ser repensado em bases mais igualitárias passou a identificar-se com as propostas socialistas. A missão social do artista consistiria em produzir obras e reflexões comprometidas com as causas populares. Dessas convicções partilhavam escritores como Graciliano, Jorge Amado, Aníbal Machado, Astrojildo Pereira, Álvaro Moreyra, Dalcídio Jurandir, Dionélio Machado, Moacir Werneck de Castro e Caio Prado Júnior; e artistas plásticos como Cândido Portinari, Di Cavalcanti, Carlos Scliar, Djanira, José Pancetti, Israel Pedrosa e Bruno Giorgi.

Em 1951, Graciliano foi eleito presidente da Associação Brasileira de Escritores. Um ano depois, viajou para a então URSS e visitou outros países socialistas, o que resultou no livro Viagem. Faleceu de câncer em 20 de março de 1953, aos 61 anos de idade, no Rio de Janeiro.

Observação e vivência são presenças marcantes nos livros de Mestre Graça. A preocupação com os problemas sociais do povo brasileiro, especialmente do nordestino, foi sempre o traço primordial de sua obra. Assim, o escritor definiu a sua literatura à irmã Marili Ramos de Oliveira, aprendiz de ficcionista, em novembro de 1949: "Só conseguimos deitar no papel os nossos sentimentos, a nossa vida. Arte é sangue, é carne. Além disso não há nada. As nossas personagens são pedaços de nós mesmos, só podemos expor o que somos" .

Para o crítico Tristão de Athayde, Graciliano era “um homem íntegro e ficará na história de nossas letras como a imagem do escritor em sua mais pura expressão. Isto é, de homem e de obra incorporados numa mensagem e num exemplo em que a beleza estética da obra e a pureza moral do homem constituem um monumento perene em nossa cultura de todos os tempos”.

Auto-retrato (aos 56 anos)

Nasceu em 1892, em Quebrangulo, Alagoas
Casado duas vezes, tem sete filhos
Altura 1,75
Sapato n.º 41
Colarinho n.º 39
Prefere não andar
Não gosta de vizinhos
Detesta rádio, telefone e campainhas
Tem horror às pessoas que falam alto
Usa óculos. Meio calvo
Não tem preferência por nenhuma comida
Não gosta de frutas nem de doces
Indiferente à música
Sua leitura predileta: a Bíblia
Escreveu Caetés com 34 anos de idade
Não dá preferência a nenhum dos seus livros publicados
Gosta de beber aguardente
É ateu. Indiferente à Academia
Odeia a burguesia. Adora crianças
Romancistas brasileiros que mais lhe agradam: Manoel Antônio de Almeida, Machado de Assis, Jorge Amado, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz
Gosta de palavrões escritos e falados
Deseja a morte do capitalismo
Escreveu seus livros pela manhã
Fuma cigarros Selma (três maços por dia)
É inspetor de ensino, trabalha no Correio do Manhã
Apesar de o acharem pessimista, discorda de tudo
Só tem cinco ternos de roupa, estragados
Refaz seus romances várias vezes
Esteve preso duas vezes
É-Ihe indiferente estar preso ou solto
Escreve à mão
Seus maiores amigos: *Capitão Lobo, Cubano, José Lins do Rego e José Olympio
Tem poucas dívidas
Quando prefeito de uma cidade do interior, soltava os presos para construírem estradas
Espera morrer com ** 57 anos.

* Capitão Lobo comandava o quartel em que esteve preso no Recife, em 1936; Cubano foi um ladrão que ele conheceu na cadeia. José Lins do Rego, escritor. José Olympio, editor.
** Morreu com 61 anos.

O mandamento do escritor

"Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer."

Um cidadão insubornável

Durante os anos de 1929 e 1930, Graciliano Ramos enviou dois relatórios sobre a sua atuação à frente da prefeitura de Palmeira dos Índios ao governador do Estado. Ao ter conhecimento destes relatos, o poeta e editor Augusto Frederico Schmidt suspeitou que o autor devia ter um romance na gaveta e manifestou desejo de editá-lo. Seduziu-o a linguagem nada burocrática, mas criativa e com “o fel da ironia”. Incluídos no livro Viventes das Alagoas, seus balanços administrativos (veja trechos abaixo) são exemplos de como o administrador deve ser honesto com o dinheiro público.

“Exmo. Sr. Governador: Trago a V. Ex.ª um resumo dos trabalhos realizados pela prefeitura de Palmeira dos Índios (...). Não foram muitos, que os nossos recursos são exíguos. Assim minguados, entretanto, quase insensíveis ao observador afastado, que desconheça as condições em que o município se achava, muito me custaram.

O principal, o que sem demora iniciei, o de que dependiam todos os outros, segundo creio, foi estabelecer alguma ordem na administração.

Havia em Palmeira dos Índios inúmeros prefeitos: os cobradores de impostos, o comandante do Destacamento, os soldados, outros que desejassem administrar. Cada pedaço do município tinha a sua administração particular, com prefeitos coronéis e prefeitos inspetores de quarteirões. Os fiscais, esses, resolviam questões de polícia e advogavam. Para que semelhante anomalia desaparecesse lutei com tenacidade e encontrei obstáculos dentro da prefeitura e fora dela – dentro, uma resistência mole, suave, de algodão em rama; fora, uma campanha sorna, oblíqua, carregada de bílis. (...) Dos funcionários que encontrei em janeiro do ano passado restam poucos: saíram os que faziam política e os que não faziam coisa nenhuma. (...) Não sei se a administração do município é boa ou ruim. Talvez pudesse ser pior.

Não favoreci ninguém. Devo ter cometido numerosos disparates. Todos os meus erros, porém, foram de inteligência, que é fraca. Perdi vários amigos, ou indivíduos que possam ter semelhante nome. Não me fizeram falta. Há descontentamento. Se a minha estada na prefeitura por estes dois anos dependesse de um plebiscito, talvez eu não obtivesse dez votos. Paz e prosperidade.